Mar negro - Parte II
Por mais que eu – ser terrestre – existisse fisicamente, nenhum ser naquele lugar era como eu. Eles sabiam exatamente que eu estava esperando alguém ou buscava qualquer sentido lógico para a minha presença ali. Essa expectativa é inerente aos humanos e eu não fugiria a regra. Estaria deixando que percebessem meu estado de contradição ora tranquilo, ora assombrado?
Meus pensamentos pareciam públicos e rarefeitos, não podia guardar qualquer segredo e não precisava me comunicar com palavras. Os meus sentimentos e imagens eram traduzidos por quem observava. Mesmo sem ver corpos, sabia que não estava sozinho. Sinto mais um formigamento, deve ser um arrepio.
Desejei companhia. Podia ser de alguém ou algo que pudesse ver com os meus olhos. Qualquer rosto poderia me salvar do silêncio e solidão. De repente, um cinzeiro esverdeado surgiu no balcão de caixotes e nele havia um pedaço de papel branco com três dobras. Abri. Ele era parte de uma folha com pautas azuis gastas de tanto que se havia escrito e apagado. Quase em branco, não fossem as rasuras do tempo de uso. Li o que estava escrito. Mas o que decodifiquei não estava no idioma que uso para me comunicar com os meus semelhantes. Eram códigos estranhos a mim em um outro momento, mas naquele pareciam lógicos e entendíveis. Números, símbolos e caracteres nunca vistos.
Esquivei para os lados com interrogações impostas pelo recado direto e curto a mim. Era seco, sem possibilidade para dualidades. Quase matemático na lógica do 0-1. O silêncio insistia e o casebre permanecia imerso e flutuante nas bordas do mar de escuridão sem ondas e sons.
Qualquer rosto poderia me
salvar do silêncio e solidão
Mar Negro
Num dado momento, surge colado ao meu rosto a representação do que estava escrito na folha rasgada. No entanto, como me assustei, empurrei o que estava diante de mim ao mar negro de plasma. Não ouvi um único grito ou sinal de dor na queda, ele apenas foi engolido pelo escuro enquanto me observava sem piscar e sem dizer qualquer palavra. Aquilo me assustou, talvez preferisse ter escutado um grito, um som de partida, algo que indicasse que aquilo que estava diante de mim tinha vida e era meu semelhante.
O papel, antes aberto, se fechou no cinzeiro sem que eu precisasse fazer isso. As luzes anis agora formavam uma borda cintilante no casebre. Havia feixes de luz por todo o lado. Abri a nova mensagem e vi o que me perseguia sempre. A luz transbordou os meus olhos e tive visões de uma Terra tão diferente e distante da que vivia. Meu cotidiano banal já não existia, menos ainda as formas de vida dele. Tudo era novo, misterioso. Eu via tudo e me assustava tamanha precisão e beleza de funcionamento. A paz era onipresente e dali em diante associei o que dizia o papel para com o que via. Acho que estava em alguma face do tempo. Não era dia, tampouco noite. As cores do céu eram intermediárias e indicavam parte do dia e parte da noite. Me encantei.
Achava que estava em
alguma face do tempo
Mar Negro
Meus olhos seguiam dilatados, tudo era turvo. Não sei mensurar quanto tempo passei naquele lugar. No espelho, notei que o meu corpo devia ter alguns quilos a menos. No meu lado transcendente, havia a certeza de que o que quer que exista nas faces ocultas do tempo de uma vida banal precisa ser revelada e experimentada mais vezes. Quero mais e quero entender como tudo aconteceu. Perseguia inutilmente a sensação diferente de tempo no envolto do mar negro.
LEIA TAMBÉM: Parte III: Mar negro
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