O abismo entre Lucy
Lucy inclinou-se para o lado oposto da cama e levantou-se. O que esperar do dia já nascido com a impressão de que irá terminar, mesmo com inúmeras atividades, que diz gostar e fazer bem? Qual tipo de dia poderia animá-la? Arrastou-se pela casa na mesma apatia e cansaço da semana, travestidos da sensação de gastar bem a própria vida. Fitou seu corpo de perfil e, para minimizar o caos do próprio corpo, esticou a saia até colocá-la próxima ao joelho outra vez. Tudo em ordem, pensou. Ordem? Estava tão automatizada, que já nem refletia em como conseguia manter-se de pé e erguida.
No canto do quarto, as malas usadas há muito tempo. Quando terá sido a sua última viagem? Um ano? Três meses ou o último final de semana? A dimensão do tempo a confundia. Quanto mais experiências, mais o tempo parece ter passado para ela. Nos poucos momentos em que se permitia ficar sozinha consigo mesmo, a sensação é de que um dia é um ano. E é assim que vai matando aos poucos, sem perceber, os sonhos e a crença de que está vivendo uma vida longa.
Ela não entendia muito bem as sensações ilusórias de satisfação, depositadas em si mesma todos os dias. Lucy permanecia imersa aos efeitos de desejar o que não pode ter. Como o desejo por algo que não sabe o que é, era tudo que tinha, o paradoxo é inevitável: ao mesmo tempo em que o desejo a motivava a seguir, era também a sua maior prisão. Estava presa a sentimentos, enquanto sentia-se livre a ponto de aproveitar a vida; e como acreditava aproveitar. Por crer nos desejos (se é que eram desejos mesmo), resistia em meio a escombros, que lhe provocavam feridas severas e difíceis de lidar. Por tudo isso, era forasteira.
Vagava. Era tudo que poderia fazer. Vagou até o trabalho, a faculdade, ao encontro com a família e amigos. Lucy não parava em casa. Tinha vários amigos, mas nenhum deles parecia ser bom o suficiente. Desejava mais. Expandia seu ciclo e saciava as suas necessidades mais íntimas, com qualquer pessoa que pudesse lhe parecer interessante. Quando só, no entanto, sempre era empurrada a um abismo. Quantas pessoas são necessárias para preencher um abismo? Ela usava todas, sempre. Seguidas vezes. Suava, misturava seu corpo, lábios e carne. Era tudo em favor de algo que não sabia bem, mas que achava poder lidar sem provocar efeitos nela e nos outros.Vagou outra vez, dia a após dias. Vagou em casa, no quarto, na materialidade dos instintos e desejos físicos. Levantou da cama e continuou a vagar. Os pés gelados varriam o chão de poeiras superficiais. De repente, Lucy desejou voltar para 2003, quando teve o melhor réveillon de sua vida. Ilusão. Pura ilusão. Lucy mal se lembrava do que fez de relevante durante a semana, das pessoas que por um minuto achou que poderiam ficar na sua vida. Quantas pessoas Lucy faz questão de deixar claro que serão importantes e depois, ao encontrar outras, descartaria como um comando prático dado a um arquivo num disco virtual? Ilusório imaginar que ela se lembrava de 2003. Era estúpida, por se imaginar tão longe. Ela mal sabia em que ano estava vivendo.
Sentou-se novamente, agora na poltrona. Olhou suas malas no guarda-roupa e as que estavam encostadas na parede. Pensou em fazer uma viagem. A viagem poderia resolver tudo. Poderia tirá-la desse estado de inércia disfarçada de rotina atarefada, ou da repetição em ciclos infinitos. Poderia driblar os efeitos dos relacionamentos estranhos, que ela considera sérios e reais.
Ela sabia, porém, que não poderia ir a lugar algum sem conhecer o tamanho dos seus sentimentos. Sem livrar-se dessa sensação de embate, do vazio. Quantas pessoas são necessárias para que ela possa livrar-se desse abismo? Se ao menos pudesse ver o quão esse abismo é o reflexo do que esconde, quem sabe tudo não mudasse. Mas ela é resistente às novas crenças. É resistente a qualquer coisa que a tire da zona de conforto.
Lucy vagou outra vez. Ocupou espaços. É tudo que poderia fazer. Mas o seu desejo por uma viagem salvadora permanecia. Ela viajaria o mundo inteiro. Poderia, quando tivesse mais condições financeiras, afinal estava no caminho certo. Trabalhava, estudava e fazia de tudo para ocupar o tempo. Reclamava, mas achava necessário ter muito que fazer. Não é este o melhor modelo de vencer? Questionava aos questionadores.
Entretanto, continuaria no mesmo lugar, no mesmo quarto, mesmo que num novo apartamento. Na mesma sensação de abismo entre ela mesma e seus relacionamentos e quereres. No mesmo abismo entre os desejos resistentes e dos delírios, ambos produto do comportamento instintivo, apático e automático. O que estaria faltando para Lucy? Ela tinha o desejo, pessoas e trabalhos. O que faltava? Amor? Não. Lucy tinha muitos pretendentes e mesmo quando namorava, davam em cima dela. Era considerada bonita e sabia disso, por isso permitia, porque a sensação de que existem outras pessoas prontas para ela a fazia bem.
Lucy viajaria o mundo inteiro. Conheceria mais pessoas do que um dia imaginou. Continuaria no mesmo lugar, no entanto. Como parece duro para Lucy ter de lidar consigo mesma, com esses sentimentos incertos, com a êxtase e a depressão em ser o que constrói no instinto das suas ações. Parecia estúpida e talvez seja mesmo. Mas continuava presa aos seus desejos imediatos, as crenças mínimas, a rotina e ciclos, que não permitiam nunca dizer adeus, tampouco cinco minutos aprofundados com a própria companhia.
Vagou. Vagou outra vez pelo deserto. O deserto, contudo, era cheio de pessoas, com as quais fazia questão de se relacionar. O relógio já marcava o final de mais um dia. Lucy deitou, dormiu e não sonhou. Como poderia sonhar, se não há sonho e nem conhecimento do que pode existir, além do que passa pelos seus olhos e pelas suas necessidades imediatas? O grau de ceticismo a perturbava de tal modo, que não acreditava nem nela mesma. Insegura.Não se conformou em abrir mão de dizer adeus a algo que sempre desejou. Era escrava com sorriso no rosto e cheia de vida no abismo de sentimentos, que ela mesma desconhecia. Quantas pessoas ainda serão necessárias, para preencher esse abismo entre Lucy e ela mesma? ∞
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