Historietas de Carnaval: Léia - Parte II

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LEIA A PARTE I

II

– Leinha, minha querida, como está indo de Carnaval? – Pergunta Meire, esposa de Raul.

– Ah, Dona Meire, vai indo bem. Estou conseguindo algumas diárias aqui perto e acho que se sobrar um dinheiro vou pro interior ver mainha.

– Tu não gosta de Carnaval?

– Deus me livre, Dona Meire. – diz colocando o pano de prato nos ombros e a mão no peito. O sorriso é meio desengonçado sem saber para quem, mas sincero – Morro de medo. Tem tanta violência. – Cruza os braços.

– Realmente tem umas brigas que nem sabemos como começa, vemos tudo daqui de cima, da varanda mesmo. Sempre vem uns amigos, como deve lembrar. Era bom antigamente, quando saíamos despreocupados. Fico louca quando o Ricardo sai e não diz a hora que vai voltar.

– Pois é. E a Dona Zilene vem também esse ano? Trabalhei ontem na casa dela.

– Sim. Vem ela, o marido e os dois filhos.

– Ah que bom. – suspira como se eles fossem pessoas queridas.

Léia retira a mesa do almoço, retorna para cozinha e lava os pratos mais uma vez. Da casa dos Jensens, segue para a casa dos Meira, lá faz faxina e deixa tudo pronto para o prédio que servirá de camarote. É quinta-feira de Carnaval e a orla da capital é movimentada por pessoas de diferentes lugares. Há algumas ruas em que é impossível andar, seja pelo mal cheiro dos banheiros químicos ou por as pessoas usarem a própria avenida como um. Já é quase final do dia e seu telefone toca.

– Pode falar, Seu Paulo.

– Léia, você poderia vir aqui no domingo? Podemos pagar o seu transporte e fechamos a diária com um acréscimo, pode ser?

– Oh Seu Paulo, eu estava querendo ir para o interior ver mainha, mas não sei se consigo. Qualquer coisa lhe aviso, tudo bem?

– Hum. Eu precisaria da resposta hoje, porque se você não quiser ou puder, vou chamar outra pessoa.

– Ah, tudo bem. Se está com tanta urgência, melhor não me comprometer.

– Você pode ir no final do domingo para o interior e voltar na terça. É só você chegar aqui às 7h e terminar o serviço até o meio dia.

– Não sei, Seu Paulo, transporte no domingo é muito ruim e realmente estou querendo ir ver mainha. – antes que Léia terminasse de se justificar, o homem responde um “Ok, então” e encerra a ligação.

Por alguns instantes, ela se sente culpada por rejeitar o serviço. O dinheiro extra poderia ajudá-la a inteirar e comprar algo para casa. Mas, ao mesmo tempo, ela sente que precisa voltar para cidade natal porque sua mãe está com a idade avançada e a cada data comemorativa que passam juntas, ela já não sabe se é a última.

O telefone toca novamente. Desta vez é Júlio, filho mais novo de Léia.

– Mãe, que horas a sra. chega?

– Vou sair daqui a quinze minutos. Se o ônibus ou a van não demorar, devo chegar em uma hora. Seu pai já está em casa?

– Já sim.

Eles conversam sem dizer muitas palavras sobre o dia e as prováveis dificuldades para chegar em casa.

– Tá bom, meu filho. Um beijo, fique com Deus.

No final do dia a diarista segue para dependência de empregados e troca de roupa novamente. Ela se despede dos Meira.

– Tchau, Doutô, Dona Lurdes, bom Carnaval para vocês.

– Bom Carnaval para você também, Léia – respondem.

III

O serviço tinha se alongado um pouco mais e quando ela deixou o apartamento dos Meira, os trios já estavam desfilando pela orla da Barra-Ondina. Agora Léia precisava passar por parte da multidão até alcançar o ponto de ônibus. Ela agarra a bolsa com força, põe o dinheiro das diárias bem escondido, respira, apruma os óculos e começa a enfrentar o circuito. Apreensiva, qualquer aproximação lhe causa espanto. Mas as pessoas estão em clima de festa e não diferenciam quem está de passagem e quem está na folia. A multidão empurra Léia de um lado para o outro e ela perde o controle do próprio caminho. Apavorada, teme que algo lhe aconteça ou que perca o ônibus. Meu Deus, um táxi para lá seria uma fortuna – repetia em silêncio.

Quando finalmente consegue se reequilibrar e traçar uma rota de fuga até o ponto de ônibus, pingos de chuva a fazem olhar para cima. Ela se surpreende com o que vê. Mesmo morando tantos anos em Salvador, nunca tinha visto um trio de perto e menos ainda qualquer artista. Seus olhos parecem aprovar o que está diante de si a ponto de sentir e absorver parte da energia que emana dos foliões.

A música é invasiva, alta, ensurdecedora e ela permanece ali estática agarrada a bolsa, talvez por uns dez ou quinze minutos, e admirada com o que via. De repente, a preocupação com a condução cessou, as obrigações de chegar em casa também. Quando encarou uma artista no trio e se misturou aos foliões ela se sentiu parte da festa pela primeira vez em seus 42 anos de vida. Sua impressão sempre fora de temor pela violência e caos generalizado em meio aos que brincam a festa do chão fora das cordas. Contudo, naquele instante tudo aquilo ruía e a sua crença dominante de que a festa não poderia lhe acrescentar nada de bom começara a ganhar fissuras espessas.

O trio avança e Léia avista ele partir para outra parte do circuito com desejo de seguir admirando a festa, no entanto, quando a rua é esvaziada parcialmente, relembra de que precisa voltar para casa. Os seus filhos a espera, o marido também. Inclusive, devem estar preocupados com a demora. Todas as inquietações de sua rotina retornam à medida que mais pessoas deixam a avenida para acompanhar o trio e abrir espaço para que ela alcance a rota para o ponto de ônibus.

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Distante do circuito, Léia finalmente embarca de volta para casa na van. Com a toalhinha e o terço, agradece pelo dia e pede para que chegue segura em casa. Ainda não é tarde da noite, mas por morar em bairro periférico, ela sabia que devia chegar o mais cedo possível por temer que lhe levasse o que tanto lhe custou trabalho. Com a toalhinha, enxuga o rosto. Ao mesmo tempo, relembra daquele trio tocando de tão perto e lhe paralisando todo corpo e alma.

Ela sentiu vontade de confessar para si mesma que pela primeira vez na vida teve vontade de ficar na festa, de ser parte dela. Ao descer da van, já em seu bairro, a rua pouco iluminada é uma reta até alcançar onde esteve no início do dia. Por fim, segura.

Em casa, já teriam jantado ou estariam à sua espera? Agora Léia imaginava que o vislumbre da festa que tanto temia e fora experimentado já era algo distante de si, assim como está anos-luz dos filhos e do marido. Eles estavam em casa, seguros. Continuam sem provar do que ela provou espontaneamente. A família poderia, inclusive, estar entregue à inércia lhe esperando para a janta ou fazendo fiança com o dinheiro que ela recebeu no serviço para comprar algo para compor a mesa: o açúcar, o pão, o leite? O que falta hoje?

Como ela poderia sair de onde está para se entregar àquele sentimento de liberdade que lhe ocorreu ao encarrar o trio pela primeira vez? Seria um preço alto para si? Para sua rotina? O que o seu marido lhe diria? Seus filhos? Ao imaginar a censura deles se sente como pecadora, sobretudo diante da contradição: o que tanto temia não necessariamente é assustador. Foi só um momento que não deve se repetir, concluiu ao abrir o portão de casa. O som do gradil anuncia a sua chegada e tranquiliza a família que estava a espera.

Entretanto algo diferente emergia a passos largos. Nas idas e vindas para casa, a diarista nunca havia reparado a vida que levava e de como desde os 13 anos poderia ter tido um futuro diferente. O espírito agora se abatia diante do tédio pela rotina sempre indo e voltado para casa, ouvindo os patrões falarem de suas conquistas e viagens, enquanto ela sequer conseguia ter tempo para ver a mãe idosa. O que mudaria daqui para frente ou nos próximos anos? Quando seus filhos tivessem as próprias famílias se sentiria finalmente livre? Ou quando o marido, que às vezes lhe parecia um adorno, enfim lhe desse condições para viverem uma vida melhor sem tanta opressão e trabalho Surgia um incômodo sutil, mas arriscado. Era como um risco numa parede em branco que tendia a se expandir.

Léia experimentava a vontade de viver uma vida diferente, quiçá melhor. Anestesiar-se de seu próprio mundo, ainda que por poucos minutos, lhe era algo inédito e surpreendentemente bom. Ela repetia para si, sem compreender o que tudo isso de fato lhe causou, que nada daquilo iria se repetir. Sentir vontade de dançar? Se entregar a energia do Carnaval? Nunca mais. É violento, coisa para os outros viverem, mas não ela. Ela não pode. Mas por quê? Esquecer que existe e vive uma vida que lhe implica numa rotina diária e cansativa? Não, isso não é possível. O que poderia libertá-la daquela que parece ser a versão perpétua de si? Ela não sabia, não podia sequer imaginar, mas havia um portal aberto pela primeira vez e agora com possibilidades reais de atravessar para o outro lado. Mais tarde ela descobriria que o trio de perto e a energia do folião seria só o começo para um novo mundo: o seu.



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