Corpo estranho


| foto: pixabay
Havia algo errado em mim e agora essa sensação de desequilíbrio não me deixava em paz como noutros tempos. Olhava-me no espelho e percebia os sinais da velhice. Mas como, como cheguei a idade do bem-sucedido com esse enorme vazio? Décadas atrás de décadas com cicatrizes espalhadas em minha alma nas tentativas de encontrar a felicidade. Tudo então se resume ao esforço inútil?

Eu não tinha medo. Há alguns anos, o medo passava de longe de mim. Nunca represava os meus sentimentos por receio da dor que eles por ventura trouxessem. Tudo bem, agora posso assumir: se quem sabe existisse medo, era o de perder a capacidade de amar outra vez. De me tornar mais um molde frio de gesso, que se mistura nas cirandas e selvas de pedra.

Mas o que estava errado? O que eu poderia fazer para recuperar algo que não tive? Ou melhor dizendo: ter o que nunca tive? Jamais consegui respostas e por um tempo desejava voltar e beber da inocência da juventude para justificar a ausência da felicidade. Porque quando se é jovem, é perdoável não a reconhecer.

Desejava voltar para alguma versão minha. Contudo, que versão é essa que nada poderia acrescentar para viver com segurança o hoje? Um adulto quase na meia idade que ainda assim não alcançou os próprios sentimentos. De que serviria essa versão tão distante do que me tornei agora? Há talvez uma tola esperança de que ao trazer de volta uma versão, possa ressurgir a esperança e quem sabe seja capaz de destruir o receio de desaprender a amar.

Um amor verdadeiro. Engana-se quem acha que se reconstruir quando se fica mais velho é mais fácil do que quando mais novo. Neste instante, as minhas experiências passadas de superação pouco podem fazer por mim. Porque a cada finalização, se volta para o começo onde tudo tende a inércia e solidão. Enquanto isso, os anos passam, me apavora essas marcas no corpo que dizem a minha história, porém fazem com que cada vez mais poucas pessoas se aproximem. E eu, cada vez mais sem esperanças, cada vez mais seco e preocupado em perder a capacidade de amar.

Teria eu exagerado ao tentar me amar por inteiro e verdadeiramente? O excesso pode ter afastado qualquer prenúncio de relacionamento, mas essa fase foi importante para encontrar algo que estava destruído e perdido por relações passadas. Estou diante de um jogo de perdas e ganhos constantes? Quero parar de jogar.

O tempo passa e ele não me espera resolver os meus dramas internos. Avança a idade e as relações ficam cada vez mais escassas, líquidas e rarefeitas. Por fim, me acostumo com a solidão. A possibilidade de amor se perde em meio ao presente-passado apático. Agora entendo o estranhamento no meu corpo, é algo perto do medo de não conseguir amar outra pessoa e recomeçar nestes anos de vida que ainda me restam. É o receio de falhar com os próprios sentimentos.


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