É tarde, muito tarde

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Devia agradecer as surras que levei da vida? - Me perguntei. "Hum, ok, vida. Obrigada pelos tapas. Agora tem o outro lado. Bata mais forte”. Quase na mesma da hora veio essa resposta escorregadia e aparentemente sábia, que exclamava, apesar da ironia, como sim. Acho que mesmo se eu não quisesse, teria escutado.

Havia em mim, contudo, o sentimento da dúvida se tais surras eram mesmo necessárias para o que julgo importante para seguir em frente. Claro que não cheguei a um consenso, mas me senti orgulhosa por ter vencido batalhas que pareciam durar para sempre.

Lá estava eu revendo as nossas fotografias. Naqueles rostos que agora me encaram com uma expressão congelada, não havia sequer sinais de que tudo terminaria da forma que ocorreu. Eu com os olhos brilhantes, você com o sorriso largo. Parecíamos felizes. Éramos? Acredito que sim.

Por temer, fiz tudo que fiz,
mas o que eu poderia fazer? 
É tarde, muito tarde

Atrás dos meus olhos brilhantes havia o medo de te perder, por saber que você era jovem e numa hora ou outra iria querer explorar o mundo, conhecer outras pessoas, fazer amigos, sair para novos lugares para além dos que já conhecíamos. Por temer, fiz tudo que fiz, mas o que eu poderia fazer? Tenho 55 anos e já não posso encontrar outra pessoa. Achei que você deveria ser para sempre.

Segui adiante fazendo tudo que fiz. Da completa entrega, à deplorável humilhação por atenção. Batia na sua porta tantas vezes atrás de alguma gotículas de amor, de atenção e alegria. Não. Verdadeiramente não compreendia que àquilo pedido não podia ser implorado. Deveria ser ofertado por ti gratuitamente, e então, chorava, exclamava, chantageava. Estupidez. Era o desespero de não morrer sozinha como agora.

Que sentimento inútil e nocivo esse de posse. Você não era minha propriedade. Não era o meu garoto e nem eu era a sua garota. Éramos apenas um casal. Se eu pudesse voltar no tempo, deixaria você livre o bastante para explorar. Explore meu amor – lhe diria. Se tivesse confiado em nós dois como casal quem sabe não teríamos ficado juntos. A culpa é minha. Pode ser que nem eu tenha acreditado em nós dois.

Havia algumas décadas de 
distâncias entre nós  
É tarde, muito tarde

Egoísmo de minha parte não querer explorar seu mundo, apreciar as suas descobertas, apoiar as decisões. Sinto remorso. Envelheço com ele. Não devo encontrar alguém nunca mais e eu sequer posso me aproximar para me desculpar.

Me desculpe, meu bem, por não ter te deixado livre, você só queria explorar, respirar e viver alguma coisa diferente com outra pessoa. Havia algumas décadas de distância entre nós.

Queria me manter no meu mundo e você queria alargar o seu. Travamos batalhas, todas elas inúteis. Nos perdemos, me perdi no isolamento à qual vivo hoje neste hospital. Agora estou aqui pronta para lhe dizer o quão gostaria de te conhecer novamente e do quanto queria que me visse outra vez, mas não entre tubos e no leito.

É tarde. Agora é tarde, muito tarde. Mas ainda assim, obrigado pelos tapas, vida. Na próxima, se ela existir, prometo me esforçar para fazer melhor. 

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