A rua do nada e do tudo









– O que há no outro lado da rua?
– Não sei, mas não ouso atravessar.
– Você esteve aqui durante todo esse tempo e nunca foi ver o que há?
– Não. Eu tenho medo de atravessar a rua. Quem sabe o que posso encontrar lá, né?
– Que medo tolo de atravessar a rua!
– Não é “medo tolo”, é o meu medo.
– Continua sendo tolo.
– Ah tá, Sr. Sem Medos.
– Tenho meus medos, mas não deixo eles me impedirem de viver experiências. Já parou para pensar que sua vida poderia ser diferente se você tivesse atravessado a rua?
– Sim, eu poderia estar morto.
– Ou poderia estar feliz, agraciado e experiente.
– Isso é estúpido, uma rua não pode mudar nada.
– Talvez você tenha razão. Mas acho que pior do que não mudar é ceifar possibilidades da mudança.
– Eu não limito e nem ceifo as coisas. Eu só tomo decisões racionais.
– Meu caro, toda racionalidade é tola, se ela se te mantém cego.
– Você diz isso porque não tem medo da vida. Mas e se a rua ao lado me fizer correr grandes riscos?
– Você aprenderá a lidar com eles e certamente sobreviverá.
– Não sei. Me parece arriscado. Eu não costumo ir a lugar algum que eu não conheço.
– É uma pena que pense assim. Uma infinidade de coisas está se fechando para você. Para quê tanto medo?
– O medo me protege das coisas que não conheço!
– Mas todas as coisas que hoje lhe são conhecidas já foram desconhecidas.
– Não é bem assim. Tudo ocorreu de forma espontânea. É diferente.
– Diferente porque não se deu conta de que o medo estava ausente, não?
– Olha, se você está querendo me convencer dessa ideia estúpida de atravessar e ver o que há do outro lado da rua, saiba que está perdendo o seu tempo.
– Eu não preciso te convencer a nada, se é você mesmo quem está perdendo o tempo. Imagine só o quão ainda lhe é desconhecido, quando você deixa de viver e permitir o novo. Quanto mais você se manter preso ao que conhece, menos irá aprender. Só se conhece novos livros, lendo novos livros.
– Bobagem. Isso é filosofia de caminhoneiro. Eu não vou atravessar a rua.
– É a sua escolha. Como toda escolha, haverá consequências e renúncias. Espero que saiba conviver bem com elas.
– Vai continuar a ler essas frases clichês dos caminhões? Entenda: convivo o suficiente para perceber que na rua ao lado, não há nada para viver.
– Há nada e tudo, vai depender do que você condicionar-se a ver.
– Você está louco, isso sim.
– O que chamam de loucura é uma possibilidade de mundo negada, você não acha?
– Acho nada, melhor que vá embora.
– Posso ir, mas sei que vou ficar.

Algum tempo depois...

– Não me lembro bem como essa conversa começou e nem com quem estava conversando, mas acho que deveria ficar menos tempo sozinho comigo mesmo. Mas o quê será que há no outro lado da rua?





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