E se houvesse um grande bug?










Na virada do ano 1999 para 2000 espalhou-se pela internet o boato do bug do milênio (ou das máquinas), que levaria ao fim do mundo. Bobagem. Hoje àquele momento pode ser encarado como um episódio cômico de mais uma previsão desastrosa do fim. Em pouco mais de uma década, após uma série de eventos, que marcaram o mundo e as políticas internacionais, ocorreram inúmeros avanços tecnológicos até os tempos dos likes e selfies. Mesmo com a tecnologia de hoje, haveria espaço para um bug destrutivo? Ou ele já não está acontecendo?


Resumidamente, primeiro veio o boom dos blogs, fotologs e, mais tarde, das redes sociais. Elas impactaram no que se conhecia por Internet. Inclusive, elas são a porta de entrada para usuários novos. Se antes a frase ‘navegar na internet’, e a palavra ‘navegador’, significavam explorar e descobrir universos informativos e interativos; com as redes sociais e transformações no início do século 21, o navegador se tornou sinônimo de meio de acesso a páginas.

Não me lembro da última vez em que ouvi ‘vou navegar pela internet’, costumeiramente escuto: ‘vou abrir tal site, tal rede social, postar tal coisa’. Virou coisa dos mais velhos navegar e explorar. Muitas pessoas nem sequer conhecem a noção de navegar. Até na escolha do navegador passou-se a rotular personalidades, dos jurássicos aos geeks. No final da primeira década do século, as plataformas móveis e os aplicativos (apps) passaram a mediar os dedos às vontades, em meio ao silêncio e momentos de isolamento. O contexto passou a pedir agilidade e efemeridade. O primeiro bug?

O comportamento bugado

Todas essas mudanças vieram acompanhadas de novos comportamentos. Os saudosos costumam afirmar que as redes sociais, o consumismo e a internet ceifam rituais. Não deixa de ser verdade, quando paramos para observar alguns comportamentos. Por exemplo, na forma como as pessoas encaram as festas, a ida a museus, o quê e como consomem; ou algo mais simples, como a leitura de livro. Ora, quem está preso à história do livro, vai parar e se arrumar só para fazer uma selfie? Qual a utilidade da foto? Mostrar a fulano? Quem se importa? Um número de seguidores?

E quanto aos check-ins que vão desde o lugar mais cobiçado do mundo à própria casa? Privacidade? Ih, parece assunto do passado. Somos vigiados por câmeras em quase todos os lugares, na promessa por segurança, e, quando estamos fora delas, nós mantemos a vigilância, no registro divulgado na rede aos vigilantes. Tudo com um sorriso no rosto a cada like de aprovação. A rede é vista como um ambiente livre. Mas na liberdade há inúmeros códigos de conduta invisíveis. Há assuntos tabus. Um deles é comentar qualquer coisa que faça questionar ou abalar os próprios comportamentos.

E o bug?

Do agir já internalizado, não me surpreende mais as pessoas se esquecerem de armazenar as experimentações nas próprias memórias. Se tudo vem para as redes, qual sentido em lembrar que há dois anos foi a uma festa e tirou 130 fotos no período de 2h? E os amigos virtuais que se excluem ao não reconhecer a foto do perfil alterada? Os amigos que pouco conversam. Parece que a noção de amizade também se alterou. Quem observa estas questões e age pensando no significado delas? Convertem-se as memórias e experimentações em roteiro de divulgação.

E se houvesse um grande bug? Se, de repente, tudo feito na internet desaparecesse? As fotos dos eventos, que já nem lembra ter ido, as nunca impressas ou achadas de forma aleatória na faxina, os recados, as mensagens, amigos, tudo apagado. Um grande branco nas nuvens, um grande vazio nas memórias individuais. É como se a vida inteira deixasse de existir.

Nos anos 80-90 era comum a mãe gritar o filho para tirar a última foto disponível do filme fotográfico. O processo da revelação deixava àquelas memórias e lembranças ainda mais singulares, até mesmo porque algumas eram detestáveis e impossíveis de apagar. O mais traumático das férias era o pesadelo do filme queimado. Quando ocorria, ao menos se tinha as lembranças. Hoje, com as máquinas modernas até em aparelhos de $ 100, será que as lembranças estão salvas?

Não se trata de saudosismo, pessimismo e nem em classificar épocas como boas ou ruins. Mas de pararmos para refletir no comportamento diante da promessa por likes de aprovação. Tenho a impressão de que pouca gente faz questão em ter a memória autônoma, longe dos ambientes virtuais, porque fazem tudo pensando em maneiras de exibir para o outro. Formas de autoafirmação e competição com um rival imaginário. A frase aleatória e particular entre amigos não escapa a regra. “Isso vai para tal rede”, por favor!

O preço do bug

O curioso de tudo é que essa ânsia toda é por um número. As pessoas deixam de viver os seus momentos com espontaneidade, em razão da promessa de aprovação e aceitação, que verdadeiramente, poucos se importam. Pode chamar atenção um cenário bem produzido, mas nem tudo que salta aos nossos olhos desperta o vínculo e é fixado.

Alguém se importa com as 90 fotos da balada, divulgadas no último fim de semana? Há um tipo de isenção com a responsabilidade em viver a própria vida e registrá-la para si. Pouco se confia na própria memória. Encontros e viagens caras, esperadas o ano inteiro, se convertem em atropelos de telas. Sorrir para uma foto não garante felicidade e nem a lembrança.

O olho humano é a melhor câmera. A memória o melhor HD. Mesmo que esqueçamos. Esquecer também é saudável e valoriza o momento da lembrança. É realmente útil aposentar o hábito de cultivar lembranças espontâneas, sem a pressão pelo melhor ângulo, sem a obrigação em parecer interessante, cool, engraçado e inteligente para os outros? Qual sentido de compartilhar o atropelado ou artificial? Corre-se o risco de tornar a própria vida desinteressante, crendo que ela é interessante.

Um grande bug pode ser útil para que as pessoas voltem a olhar para si, fora do sentido narcísico no espelho.  Se as nossas lembranças são sempre particulares, por que a ânsia em transferi-las para o virtual? Não está claro que estamos provocando bugs em nós mesmos?

É como se anulassem os vários sentidos em favor de um. Pouco se vê, ouve, fala e sente, sem algum tipo de mediação, sem vislumbrar algum tipo de exibição. Não leve tudo ao pé da letra, mas temos convivido com tantas máquinas, que estamos alimentando paulatinamente a crença de que somos uma. Tem-se esperado das pessoas comportamentos de máquinas, porém, as máquinas sempre funcionam por um preço. Que preço você está disposto a pagar e paga, sem nem ao menos reconhecê-lo?







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