CENA ADICIONAL #03

Tudo era só um... sonho ou a realidade crua?

Salvador, Maio de 2022

Vitor abre a porta e identifica uma mancha na parede em formato circular. É mofo? Tanto faz, a mancha, no entanto, lhe indica algo que ele sente falta: a sua casa, o seu lar, o seu mundo conhecido. Ele está de volta ao apartamento na Cidade do Rio, no Centro. Vitor consegue escutar o som do transportador entre os andares rangendo pela falta de óleo e os sons de passos no corredor. Algo em seu interior parece ter mudado, uma sensação de que as coisas não estão mais no ambiente. Um vento sopra no seu rosto, como um lapso do tempo, desviando o caminho de onde ele estava, trazendo-o de volta a este lugar. Como isso é possível?, se pergunta.

O corredor estreito que leva até a sala está mais longo, mais escuro, as paredes esticadas distorcem a realidade. Ele sente o cheiro adocicado do perfume de Renata e consegue imaginar até o perfume suave do quarto de Maitê. O prédio, com suas marcas de décadas, agora exala um ar soturno. O piso de madeira range com mais intensidade, induzindo que o próprio edifício estivesse lamentando o que fora. Os sons de passos que ele não dá se espalha pelo vazio da casa. Ele sente um arrepio ao passar pela porta que dá para o quarto que seria de Maitê, onde, antes, Renata e ele sonhavam com o futuro. Quantas vezes estiveram ali, pensando na decoração, no berço, no papel de parede? Agora, tudo parecia uma quimera, uma lembrança frágil, sem elementos suficientes para se tornar real.

Na sala, ela está ali: Renata, com os cabelos cacheados soltos, os olhos ausentes, o peso de uma dor não visível parece pesar sobre ela. Vitor morde os lábios, seus olhos lacrimejam. Renata está sentada no sofá, os pés descalços e inchados, tocando o chão frio do apartamento, ela olha a tela da televisão com uma atenção mórbida, mas sem realmente ver. Mais um dia de trabalho na farmácia recai sobre os seus ombros. Os detalhes do lugar, os mesmos de sempre, estão estranhamente intensificados: o cheiro da madeira envelhecida, o som abafado da cidade lá fora, o toque da luz suave que filtra pela janela suja, que ele não sabe se é noite ou dia, a pilha de roupas — entre camisas de times e jeans desgastados — dobradas em cima da cômoda, com leves desgastes na pintura do móvel.

Algo não está certo. Não há vida naquele espaço.

A televisão, que sempre fora um pano de fundo na vida de ambos, agora domina o ambiente. No centro da tela, o logotipo da Rede Aurora surge, seguido da vinheta urgente, repetida sem fim. Uma luz branca, fria, ilumina o rosto de Renata de maneira gélida, invasiva. Ela está tão imóvel que parece parte da sala, fundida com as sombras e os móveis de madeira clara. O corpo de Vitor se move instintivamente até ela, e a saudade o invade como uma onda do mar arrebatadora que pega em cheio os banhistas desatentos. Ele quer tocá-la, mas suas mãos são incapazes de alcançar seu rosto. Algo invisível, como um vidro, os separa.

Aero Gold Airlines confirma: desaparecimento do voo LAZ 735”, diz a apresentadora da TV, sua voz seca, cortante. “Equipes de resgate continuam sem localizar destroços na região de mata fechada na Floresta Amazônica. Não há notícias de sobreviventes”.

As palavras não entram em sua mente. Ele sente o vácuo de uma ausência profunda, mais do que ouve. As palavras soam como algo distante, fora do seu controle, gelando o seu corpo. O voo, o destino, a promessa feita na tarde daquele dia, tudo se dissolve no ar pesado do apartamento. A imagem de Renata, cada vez mais irreconhecível, parece se desvanecer.

Renata levanta a mão, lentamente, esticando-a para alcançar algo distante. Mas, ao invés de olhar para ele, seus olhos se fixam na barriga, como se fosse lá o epicentro da dor, onde o peso da ausência se aloja. Ela sussurra, sem desviar o olhar, e as palavras são apenas uma brisa, um suspiro que faz o coração de Vitor acelerar, misturando incredulidade e impotência. “Hoje eu senti que ele talvez nunca fosse voltar. A mensagem que ele demorou para retornar... as palavras ditas de forma apressada... A vida... A vida nunca é generosa com quem ama demais”.

Vitor sente o fantasma de sua ausência

Vitor sente o fantasma de sua ausência, o peso da sua possível morte diante da imagem de Renata sozinha.

Vitor sente um nó no peito. As palavras da esposa o atingem de maneira estranha, como se ele não as tivesse ouvido em um passado que não pode mais tocar. Algo está muito errado. Ele sabe. Ele sente que algo se parte dentro dele, uma certeza visceral, uma lâmina fincada em seu peito. A televisão continua com a transmissão fria, inclemente, mas sua mente começa a questionar. Ele não pode estar ouvindo aquilo. Não pode.

A luz da sala, agora mais fraca, começa a se distorcer. Os contornos das paredes se desvanecem em formas que não pertencem àquela casa e o próprio espaço está se torcendo, forçando-se a se reconfigurar em algo que já não pode ser compreendido. Vitor tenta falar mais alto, tenta fazer algo, mas seus movimentos são como molas tensas, hesitantes, contidas pela gravidade de algo que ele não consegue nomear. Renata olha para ele pela primeira vez, mas seus olhos estão vazios, sem o calor que ele conhecia, sem a chama que ainda existia entre os dois. Estranhamente, seus olhos espelham o rosto que ele agora veste na vida de Pedro. "Quem pode ser esse estranho na minha frente", o pensamento de Renata escapa-lhe da mente.

Ele tenta tocar seu rosto, mas ela recua com um gesto tão sutil que ele mal pode perceber. A sala, então, se torna ainda mais turva. O som da cidade lá fora parece se distorcer, o distante grito de um carro, o vento que passa por uma janela entreaberta — tudo isso se funde em um grito abafado, parecia que a própria realidade estava sendo desconstruída.

E então, tudo se desfaz. As paredes, o sofá, a luz, tudo se dilui como tinta preta na água escura de uma onda do mar. O apartamento, agora irreconhecível, desaparece lentamente, sendo engolido pela neblina. Vitor tenta resistir, segurando com as mãos o seu mundo conhecido, mas a pressão é insuportável, tudo se desfaz a cada segundo. Ele quer falar, gritar, acordar. Mas quando ele olha mais uma vez para Renata, ela já não está lá. O apartamento, de repente, se recompõe, mas agora está completamente vazio. As manchas na parede, lembranças dos móveis que outrora estiveram ali.

O silêncio, pesado e denso, invade o espaço. E no último suspiro da noite, a verdade se revela: ele está sozinho, perdido no labirinto do que poderia ter sido, ou talvez jamais fosse.

Então, Vitor acorda, o corpo suado, a mente confusa, com a impressão de que tudo aquilo tinha sido real — até o momento em que, com a visão turva, ele percebe: Renata, a casa, o apartamento, o fantasma do choque dela sabendo do acidente... tudo era um... sonho... um pesadelo...

Mas a dor, essa, parece tão concreta quanto o peso de suas próprias mãos. Vitor se levanta, apático, e observa a Baía de Todos os Santos, onde a neblina esconde os cargueiros. O céu nublado parece refletir sua própria incerteza. O que ele pode esperar agora?

© Vinicius Gericó — Mar Negro. Todos os direitos reservados.

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