CENA ADICIONAL #01

 É quase Natal...

vista da janela da casa de Pedro e Jaqueline nos anos 2000 | foto: marnegro

Pedro e Jaqueline estavam na janela de casa, no coração do subúrbio ferroviário de Salvador, num típico dia de dezembro de 2006. Era fim de tarde, e o céu começava a escurecer, salpicado pelas primeiras luzes que surgiam pelas ruas e nas janelas das casas. O calor do dia cedia lugar a uma brisa suave, carregada de cheiro de terra, sal e ferro dos trilhos próximos. O ranger do trem distante, abafado e quase mudo era o sinal de que a vida e a rotina da região seguiam ativas.

Vitor, imerso nas memórias de Pedro, sentiu-se invadido por imagens e sensações tão vivas que quase podia jurar estar lá. Essas lembranças, borbulhando na mente de Pedro, eram como um rio de emoções fluindo por ele, uma corrente que o puxava para algo puro e intocado. Era uma cumplicidade que ele conhecia, mas que parecia ao mesmo tempo tão distante, inacessível até agora nesse mundo estranho. Algo que talvez só tivesse experimentado com Tainá: a beleza visceral do vínculo entre irmãos, de uma infância compartilhada e, muitas vezes, silenciosamente fortalecida nos pequenos atos do cotidiano.

Tudo isso fazia seu peito apertar. Mas essa emoção tinha um preço: enquanto mergulhava mais fundo na vida de Pedro, os detalhes da própria irmã, Tainá, começavam a se apagar, como os filmes antigos que queimam facilmente ao serem expostos à luz do ambiente. As feições dela, os risos e até mesmo a textura da sua voz começavam a escapar de sua memória, substituídos por uma crescente e quase dolorosa admiração por Jaqueline.

Agora, imerso na essência de Pedro, Vitor sentia que a figura de Jaqueline não era apenas a irmã de Pedro. De alguma forma, ela também era sua irmã. Uma faísca que começara como curiosidade e ternura havia crescido até se tornar um amor profundo, um vínculo que parecia tão verdadeiro quanto qualquer coisa que ele já tivesse conhecido.

— Ôxe, são doze! — diz Pedro, se equilibrando na ponta dos pés para alcançar o parapeito da janela.

— Não, são quinze! Olha aí embaixo, bem perto daquela casa com os blocos pintados de branco.

— Não vejo nada, não tem nenhum a mais...

— Olha direito, Peu.

— Hmm, tô vendo na casa da antena parabólica, aquela que tem um cachorro deitado na laje. Mas aí seriam treze, faltam mais dois.

— Peu, segue seu dedo que eu vou te mostrar.

Jaqueline pega nas mãos pequenas e finas de Pedro, guiando-as com delicadeza pelo ar.

— Treze, quatorze, quinze – diz ela, sorrindo enquanto aponta.

— Ahh, é mesmo. Nossa, a cidade fica tão linda na época do Natal, né? Eu amo pisca-piscas ligados, parecem estrelas dançando pelas casas. Olha mais um ali, que ligou enquanto a gente tava contando os que estavam do outro lado.

— Agora são dezesseis, mas esse é mais simples, né?

— Não deixa de ser bonito.

Pedro dá um suspiro, pensativo, mas logo a curiosidade o faz mudar de assunto:

— Acha que mãinha vai demorar pra chegar?

— Não sei, ela e painho hoje iriam chegar tarde. Mãinha pegou um extra, e painho deve tá voltando só no final da noite lá de Barreiras.

Jaqueline suspira, encostando o queixo no braço apoiado no parapeito da janela. Havia na noite uma calma única, como se dezembro a guardasse só para si. Em poucos dias, celebrariam o Natal com seus familiares, trocariam risos e abraços, e abririam os presentes que seriam deixados cuidadosamente na madrugada por seus pais, Lúcia e Marlon. A ideia de tudo isso a aquecia, numa chama discreta no peito.

O céu limpo, esticado como um lençol azul profundo, deixava brilhar algumas estrelas tímidas. A brisa salgada, mesmo com o mar distante e fora de vista, chegava como um abraço morno. Ela trazia consigo um cheiro que parecia misturar a promessa alegre do Natal com os traços do cotidiano simples da periferia: o ferro dos trilhos, o aroma de comida de rua e o frescor das plantas que em poucos anos seriam arrancadas para construir novas moradias.

Pedro, ao lado dela, observava as casas ao redor: algumas com tijolos à mostra, outras com cerâmicas descascadas. As ruas estreitas e as luzes que começavam a piscar nas janelas o faziam pensar em como aquele era o seu mundo. Um mundo feito de coisas pequenas, onde tudo parecia conhecido, seguro e exatamente onde deveria estar.

— Vamos entrar? Quer alguma coisa pra comer?

— Faz pão gostoso pra mim?

— Claro, mas só se você prometer terminar o dever de casa antes de mãinha chegar.

Pedro desce da janela correndo, os passos desajeitados do corpo esguio, ecoando pela sala. Ele arrasta uma cadeira com esforço até a mesa de jantar e puxa o caderno da mochila de rodinhas colorida, encostada no pé da mesa marfim. Jaqueline observa a cena com um orgulho que apertava o peito, um amor que não se explicava, apenas se sentia.

Ela segue para a cozinha e tira a frigideira do armário embaixo da pia. Na ação, deixa cair uma tampa, que ressoa alto no chão, quebrando brevemente o silêncio da casa. As panelas bem ariadas refletiam seu rosto jovem e os fios do cabelo presos num rabo de cavalo apressado. Jaqueline abre a geladeira, tira a margarina e um ovo, e depois liga o fogão. O chiado do calor esquentando o metal se misturava ao som quase imperceptível de Pedro apagando a folha de caderno. Em poucos minutos, com uma pitada de orégano e uma fatia de queijo derretendo suavemente, o pão gostoso estaria pronto.



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