Por quanto tempo existi?

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Fazia tempo que não permitia deixar os típicos tons alaranjados do final do dia preencherem o meu rosto. Quase nunca terminava um, ele próprio se encerrava em meio à sensação de insuficiência ou cansaço.

O ritual ao chegar em casa se repetia: tirar os sapatos, tomar um banho, comer e assistir qualquer programa na televisão, e, quando menos se espera, o despertador toca outra vez e já há outra data no calendário.

Desconhecer o tempo não assusta, mas concluir que
vivi vidas incompletas por um futuro, sim 
Por quanto tempo existi?

Hoje, no entanto, fiz diferente. Foi como voltar alguns anos, para àquela época em que descansava na varanda de casa, enquanto o dia chegava ao fim. Somente com tal ação, tive condições de enxergar àquele show de cores que cada início de noite traz a todos.

Recuperei a juventude? Eu voltara a me apreciar e a tudo ao redor. Os meus olhos grandes percorriam os cantos do horizonte e meu corpo relaxava em meio à brisa do final da tarde, àquela que nos faz sentir-se infinito e pleno. O vento soprava e os galhos dançavam. Paz. Ela estava em mim. Quanto custa ficar com ela? Há algum boleto com o preço?

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Da sacada, dei por mim que já não havia tantas árvores, mas que uma surgiu em meio aos prédios que se reproduzem no quarteirão. Quanto tempo haveria passado? Um ano, dez, vinte? Incerteza. Desconhecer a largura do tempo não assusta, mas concluir que vivi vidas incompletas por um futuro, sim. É realmente cômodo entrar no modo automático e experimentar o cotidiano e relações de forma mecânica e efêmera.

Nesse fim de tarde, dou por mim que às vezes a própria sensação de que se está vivo pode ser ilusória. Uma pessoa pode ter uma conta bancária, consumir, deixar rastros nas redes sociais, mas ela realmente existe em meio da rotina de duchas, do vestir-se e comer às pressas por causa de um compromisso e por temer o trânsito? Por quanto tempo apenas existi?

No escritório, as janelas são bloqueadas e a luz é artificial e, portanto, não se pode ver as árvores que crescem e menos ainda as que são derrubadas para erguer colunas de concreto e vidro. Blackout. Não vejo quando a noite chega e nem quando o sol brilha mais forte a ponto de poder rachar os meus lábios. Entretanto, viver no automático é tão cômodo. E se entra nesse modo da mesma forma banal que se assina os termos de uso na internet.

  Se sente saudades de ver o final do dia, ora, não seria o caso de aproveitar os finais de semana?, pode me perguntar.

Ah, não dá. Quase nunca dava. Quando os dias não são preenchidos de trabalho, estudo, trânsito e cansaço, o corpo tinha vida própria e exigia mais, pedia o silêncio. Dizem que o lazer dos adultos é dormir e eu entendia na pele, ao ter a vida dupla entre salas de aula e escritórios. Nos finais de semana se deseja fazer tudo que não foi feito durante os outros dias, mas a cada domingo à noite pode existir a frustração de mais uma semana iniciada com pendências. 

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Para o ser humano, ainda que viva no conforto e de forma cômoda, a sensação de que o tempo se vai e não retorna é o seu algoz. Porque ele evapora, não retorna e deixa marcas no corpo. Quanto mais destaca folhas de calendários, mais o controle escorrega pelos dedos. Mas havia um futuro. Que futuro? Bebia desta fórmula desde que acreditei que um futuro deve ser conquistado custe o que custar. E venci? Quem são os reais vencedores?

Os anos passavam por mim e, aos poucos, datas foram esquecidas, rostos e relações. Começou com a ausência da ligação no aniversário e ceia de Natal, depois seguiu para não ir comer o bolo, porque era o dia de dobrar o expediente. Por fim, o esquecimento total a ponto de nem se importar com a notificação automática das redes sociais. Quando foi a última vez que mensurei quem havia partido?

Para o ser humano, a sensação de que 
o tempo se vai e não retorna é o seu algoz 
Por quanto tempo existi?

Mas eram só oito horas por dia. Ocasionalmente uma de almoço e mais umas três de trânsito para sair e voltar para casa. Passava rápido? Vez ou outra sim. Era a oportunidade de ouro que não podia passar. Mais horas no escritório, maiores as chances de agradar o chefe. Não nos ensinam desde criança a abraçar as oportunidades? Eu aprendi, tirei inúmeros dez. Mérito! E se eu estiver para perder o namoro, casamento, amigos e familiares ainda assim devo abraçá-las? Pena que viver no automático não me deixou questionar.

Agora estou aqui e vejo de longe as pessoas reproduzindo os mesmos rituais que me aprisionavam. Enquanto aprecio o final do dia, elas estão isoladas em multidões móveis nomeadas como ônibus ou vagões. Às vezes se sentem menos solitárias quando escutam música, mas não estão se isolando mais? A verdade é que não sou melhor do que elas por agora me ausentar de tudo.

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Minha vizinha acaba de passar por debaixo da minha janela. Por que ela não olhou para cima e para mim? Mas eu olhava quando estava em seu lugar? Minutos depois, vejo a luz do quarto acesa, do banheiro e, por fim, o reflexo da TV. Os canais permanecem ativos, mas o equipamento é programado para desligar sozinho.

A vizinha também é programada com a promessa de futuro. Logo mais, assim como eu outrora, terá o dia encerrado por si só. Em algum momento pode ser que aprecie o final do dia e também que ela se dê conta de que não encerra os seus há um tempo. Porém, quantas árvores terão sido arrancadas e quantas terão crescido? 

Comentários

Caio Almeida disse…

Brilhante, é um soco na cara da vida que muitos de nós levamos

Excelente, Vinícius!
Denise Costa disse…
Engraçado que agente sempre acha que terá tempo para fazer tudo ne? Eu mesma sempre acho que vou resolver tudo no final de semana, infelizmente nao consigo. Achei muito bom o que vc escreveu, queria poder mudar minha rotina, mas é tão dificil