O tempo dentro de outro tempo





Se você pudesse voltar àquela foto antiga, você sorriria daquela mesma forma? Certamente não. Muitas coisas já aconteceram. Você percebe os detalhes, relembra coisas do passado, que até então se comportava de maneira silenciosa. É compreensível perder-se observando um pouco de tudo, para finalmente perceber que o tempo passou e que há coisas que já não existem.
Viajando através de um objeto antigo, viajando através de um álbum de fotos. Comece pelo palpável e termine com o abstrato. Veja objetos e utilize-os como combustível, nade sem parar até que consiga chegar a areia para encontrar a si mesmo. Salve-se do tédio e do esquecimento das suas origens.
Onde andará àquele brinquedo, àquele enfeite na estante, àquele porta-canetas? Alguns ainda existem, outros foram dados para outras pessoas e nem sequer é possível imaginar se ainda existem. Alguns já desapareceram faz tempo, você pode ter jogado fora sem perceber, mas ao ver ali naquela foto, é quase que imediata à vontade de tocar naquilo de novo, imaginando ter aquela sensação de que algo bom ou marcante aconteceu. Geralmente as pessoas que recebem as coisas não conhecem a história delas até chegar as suas mãos.
Mas e você? É assustador e ao mesmo tempo excitante perceber que amadurecemos e envelhecemos. Olho para aquela foto e vejo alguém que não sou mais. Vejo alguém que ajudou a construir o que sou hoje. E que paradoxalmente se mantém vivo em algum lugar.
Lembra-se da época em que achávamos que as cadeiras e sofás eram carros? Lembra-se da época em que a vassoura era um cavalo domável? E do nosso incrível mundo de faz de conta que sou grande? Àquele sorriso, aquela brisa durante a tarde de sol. Àquelas festas de aniversário, àqueles doces tão irresistíveis. Já fui famoso, já fui empresário, já fui muito rico, já fui um cantor famoso, já apresentei programas. Já entrevistei muita gente, talvez tenha entrevistado mais pessoas do que a Oprah. Um dia fui uma criança e em uma época da vida, enquanto ainda era, fiz questão de dizer: eu já não sou uma criança.
Lembra-se da época em que falávamos sozinhos, que imaginávamos os nossos eternos amores, e de quando andávamos de bicicleta pelas ruas, que pareciam extensas e exploráveis? Lembra-se da época em que tomávamos sorvete e corríamos para água do mar de novo? Não perdíamos nada, parecíamos peixes naqueles verões. Lembra-se da época do primeiro beijo, do frio na barriga, do primeiro dia de aula, do primeiro de dente de leite que caiu, do sorriso que o seu primeiro amor te deu?
Onde andará aqueles brinquedos que um me acompanharam por um tempo? Onde andará os amigos de escola, que constantemente trocávamos palavras, sejam em bilhetinhos ou nas conversas informais, de que nossa amizade seria para sempre? Hoje eles estão pelo mundo. E alguns deles já nem lembro direito e sei que muitos podem não se lembrar de mim.
Lembra-se dos seus olhos no seu último dia de aula? Lembra-se de quando você prometeu ligar sempre para os amigos daquela época? Sonhos e mais sonhos, eles apesar de parecerem eternos, mudam. Mudam assim como o seu corpo. Sem que você perceba, sem se dar conta de que o mundo esta girando e cada vez mais se está vivendo. A mudança é lenta ou talvez muito rápida. Todos os dias se modificando e até que alguém que não víamos há muito tempo possa reafirmar que mudamos.
Lembra-se da época em que as férias do colégio eram mais do que bem-vindas? Lembra-se da época das viagens com a família, com os amigos, com a escola? Àquelas roupas daquelas fotos não te servem mais, mas só você sabe o que viveu com elas. Aliás, onde andará àquelas roupas? E quando se fala em internet? Lembra-se dos primeiros amigos adicionados no seu e-mail?
Transformações. Vivemos em constantes transformações. Seria cabível sentir uma leve lembrança da época em que brincávamos e sentíamos o cheiro de comida pronta? Os presentes de Natal, o cheirinho de novo da capa dos livros e dos presentes embalados. As roupas vestidas em cada virada de ano, o que desejávamos nos vestindo daquela forma?
Procuro saber onde está muita coisa. Procuro relembrar daqueles objetos escondidos e ao mesmo tempo visíveis nas fotos antigas. Não que seja nostalgia pura e não que esteja infeliz hoje. Muito pelo contrário, relembrar as coisas que se comportam de maneira silenciosa é mais do que proveitoso para compreender o que somos e o que seremos. Às vezes, as respostas de um grande problema estão bem ali, no seu álbum de fotografias.
Lembrei-me de muitas coisas e até me assustei com tamanhas mudanças. Mas isso é mais do que normal, cresci. Por mais que hoje relembre desses fatos com nostalgia, amanhã relembrarei deste momento em que relembrei. Estou crescendo, estou percebendo as ruas mudando de cor a cada estação. Sem me dar conta percebo as mudanças em meu corpo.
Um dia posso estar aqui novamente, de frente para um computador muito mais moderno, repetindo ações antigas que completam o meu eu. E o porquê disso tudo é mais simples do que parece: porque estou crescendo. Há inúmeros tempos, dentro de outros. O desafio excitante é usar o melhor de cada um deles, para encontrar os nossos complementos para novos tempos.



Comentários

Eduardo disse…
Muito bom, e ao mesmo tempo que é nostálgico é introspectivo.

Parabéns pelo blog, grande abraço.