Barba feita

| foto: pixabay

Desperto de noites incompletas num súbito momento de reencontro com a consciência para viver um novo dia. Mais um que corre arrastado, em meio às obrigações e ao cotidiano. Olho-me no espelho e começo a fazer a barba, porque ela já incomoda. Somente o movimento de tirar os pelos do meu rosto indica que o tempo está realmente passando e que estou envelhecendo. As maçãs do meu rosto estão se tornando ralas. Redemoinhos de lembranças se formam, enquanto me dou conta de que hoje é produto para o amanhã e a tão sonhada paz pode vir da noite para o dia. Eu fui o causador da consequência que me aprisiona hoje?

Não me incomoda o reconhecimento do envelhecimento, no entanto, a sensação de que algo está se perdendo sim. Sobretudo porque estou perdendo o que é mais valioso: a vida. De frente para esse espelho, reconheço no meu rosto as suas linhas e as marcas de uma vida inteira que tem sido aprisionada por um sentimento superior a qualquer controle. Nu, diante do espelho o que sou? Um bloco de carne ou um espírito? Em que lugar há o que me mantém vivo e seguro? Sinto falta disso.

Os meus olhos tão fundos indicam que essas noites mal dormidas estão deixando marcas físicas em mim. De repente, meu rosto desaparece em meio à pele que o singulariza. O meu corpo inteiro é a carne viva em movimento. Nu, observo, entre as minhas veias que circulam sangue, os buracos que há em mim. São largos e instáveis. Eles são invisíveis pela pele singular, que se camufla em ilusões cotidianas. Se você não olhar nos meus olhos por muito tempo, tudo parecerá normal e equilibrado. Buracos largos, sensíveis. Basta o vento para que a dor e o incômodo deem sinais. Tudo arde e me limita em poucos segundos.

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Faço a barba, o tempo está passando. O mundo vira outra coisa, enquanto permaneço imerso a um universo que se expande a cada buraco em mim. Os mais próximos e você mesmo me dizem: "siga em frente". Todos os dias imagino como seria viver completo outra vez. Como seria não sentir o que aprisiona e se expande nesses buracos sem minha permissão. Que conclusões posso alcançar em meio a tudo isso? Se você um dia encontrá-las, gostaria que me convidasse para um café e que as compartilhasse comigo.

A barba está feita, meu rosto se veste de pele outra vez. Esboço um sorriso e um falso equilíbrio. Embora tudo seja frágil, para vida cotidiana que preciso simular, funciona. Os meus olhos se escondem em lentes escuras e nas relações e contatos superficiais. Se você olhar um pouco mais, os pelos da barba lhe serão incômodos. Os buracos continuam e ainda ferem e fervem só com o vento. Você não tem ideia do que você deformou e transformou em mim. 






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